Pleomorfismo e Exame do Sangue em Campo Escuro de acordo com Enderlein
Eduardo Almeida, MD, PhD
Quando se contata o Pleomorfismo de Enderlein, fica uma sensação de profundo incômodo, e até mesmo incredulidade para o médico. Essa mesma sensação levou um destacado professor de medicina da Universidade de Heidelberg a afirmar: “Se Enderlein estiver certo, teremos que jogar fora todas as teorias médicas e tomar o caminho que ele nos apontou”. A radicalidade dessa afirmação é absolutamente procedente, pois ele está, na verdade, mensurando o campo do pleomorfismo a partir da visão monomórfica, que é o pilar fundamental sobre o qual foram construídas as teorias da medicina ocidental contemporânea.
É preciso que se faça uma breve retrospectiva do processo de construção das teorias da medicina atual, para se compreender a influência do monomorfismo e se poder penetrar no campo do pleomorfismo.
A medicina ocidental contemporânea nasceu no século XVIII com a afirmação da teoria anatomo-clinica , que permitiu a constituição da Clínica ou da Medicina Interna. Essa teoria médica em última análise afirma o seguinte: o adoecimento é conseqüência do aparecimento de uma lesão na profundidade do organismo (espaço interno, medicina interna). Portanto, não há doença sem sede e não há doença sem lesão. A lesão é ao mesmo tempo sede e causa da doença. Essa teoria foi o arranjo melhor acabado do pensamento mecanicista na medicina. Mas, possuía uma grave limitação em termos de doutrina médica – não oferecia de imediato nenhuma nova terapêutica. Simplesmente, demolia toda a nosologia médica antiga e iniciava a construção de uma nova nosologia. Esse período ficou conhecido como fase do ceticismo médico.
No entanto, como todo novo conhecimento, a teoria anatomo-clinica abriu avenidas para novas construções, e na esteira desse paradigma surgem a teoria do germe ou etiopatogênica e a teoria celular.
Há muito já se sabia da existência de “corpúsculos microscópicos” nas secreções de indivíduos adoecidos, mas esses achados não faziam sentido para a medicina vitalista/humoralista da época. Foi o pensamento organicista/localista, centrado na lesão, da medicina anatomo-clinica que irá pavimentar o caminho que levará o germe para o centro do processo causal do adoecimento.
O químico Pasteur com o conhecimento que adquire dos seus estudos sobre a deterioração de vinhos e alimentos, retoma a tese microbiológica e vai adiante com os estudos dos soros e vacinas. A experiência de Pasteur com a soroterapia, a vacinação e, em especial, com as conclusões dos seus estudos da fermentação microbiológica da solução de paratartarato de cálcio, deu-lhe a convicção da especificidade do germe. Pasteur demonstrou que um determinado microrganismo (fungo) é capaz de reconhecer a diferença de dissimetria molecular (levogira/dextrogira) em soluções quimicamente idênticas, mas dissimétricas (o fungo fermenta apenas o isômero dextrogiro). O germe seria tão específico que é capaz de identificar até mesmo um isômero óptico.Assim, Pasteur unifica na mesma unidade teórica, o germe, a fermentação e a doença.
A tese da especificidade é a alma do monomorfismo. No plano da bacteriologia, afirma que os micróbios podem ser classificados em espécies e gêneros fixos e imutáveis. Uma vez transposta para a etiopatogenia, irá sustentar que um germe traz em si o potencial patogênico específico. Uma vez em contato com o hospedeiro, e obtendo condições favoráveis, irá produzir uma doença também específica.
A influência dessa teoria médica tem sido tão profunda para medicina atual, que ultrapassou os limites dos adoecimentos ditos por causas infectocontagiosas, e se estendeu para toda a nosologia e pensamento médicos. Os adoecimentos sem a participação do agente microbiano passaram também a responder à mesma lógica das enfermidades infecciosas. Ou seja, o pensamento ontológico microbiano construiu a noção de doença como entidade específica. Fala-se da doença como algo que existisse e possuísse um vida antinatural. A doença se tornou um ente, uma entidade, e o exercício médico se orientou para a decodificação da linguagem da doença.
A tese da especificidade recebeu o suporte decisivo com os trabalhos de Ehrlich na Alemanha. Esse autor, um estudioso da histoquímica, passou a estudar a afinidade dos microrganismos pelos corantes, e constrói uma tese de forte parentesco com a tese da especificidade. O microrganismo além de ser específico em termos de ação, possui afinidade por certas substâncias (corantes), que também o individualiza.
A tese da afinidade encontrou o seu nicho não no campo das teorias sobre o adoecimento humano, mas no campo da terapêutica. Se o microrganismo tem afinidade por um determinado corante, quem sabe podemos ter um corante que além de colorí-lo , possa também inibir o seu crescimento e ou matá-lo. Nasce assim, as bases da terapia química moderna. Não é por acaso que o primeiro antimicrobiano eficaz descoberto foi o prontosil vermelho, o precursor das sulfas.
Ehrlich e Koch defenderam a concepção do monomorfismo. Ambos eram hostis aos conceitos de adaptação, evolução e predisposição. Inicialmente, aceitaram que os sintomas eram causados pela presença física da bactéria, mas posteriormente admitiram o papel das toxinas, tão salientado por Pasteur. O modelo químico das toxinas acabou sendo a base explicativa para a ação do microrganismo. Ou seja, o estudo do microorganismo passou a ser exclusivamente centrado na sua ação química (toxinas), e não na relação entre seres vivos. Na verdade, tanto a ação bacteriana como a ação medicamentosa, passaram a ter o mesmo mecanismo explicativo – a teoria dos receptores.
Essa breve síntese do conhecimento médico contemporâneo deixa claro não só a profunda influência do monomorfismo na construção das teorias e do próprio objeto da medicina (a doença), mas também sua influência marcante no desenvolvimento da quimioterapia. A terapêutica química na medicina é filha dileta do monomorfismo.
Embora o monomorfismo esteja ligado à teoria do germe, no plano do saber médico essa tese se espraia para além desses limites, e constrói idéias/concepções como a de monocausalidade, de relação causa-efeito, de mecanismos de doença, etc. Pouco ou nada se fala da complexidade do ser da enfermidade e da sua força curativa (natureza medicatrix).
O pensamento crítico na medicina e as várias tendências que buscam superar o mecanicismo reducionista e simplificador da medicina atual, devem ter a percepção de que a crítica ao monomorfismo é condição indispensável para a plena realização dessa tarefa. Não adianta apenas, no caso da medicina, produzir críticas contundentes. É necessário colocar algo no lugar, que tenha a dimensão de uma doutrina médica. Ou seja, que ofereça uma versão do adoecimento, como diagnosticá-lo e como prevenir/tratá-lo. Sem dúvida, a teoria Pleomórfica oferece esses atributos. É impressionante notar como um debate tão presente no primeiro século da bacteriologia, foi simplesmente deletado desse campo. O mais impressionante ainda é notar que os próprios pesquisadores que atualmente vêm desenvolvendo pesquisas no campo pleomórfico, tendem a ignorar o enorme legado do pleomorfismo desde Bechamps, passando obrigatoriamente por Enderlein. Há pouco li os Anais de uma Conferência Internacional sobre Pleomorfismo, realizada no ano 2000 no Canadá, onde os conferencistas sequer citam o nome de Enderlein. O leitor ao se familiarizar com o campo do pleomorfismo poderá ter a dimensão da importância dos trabalhos de Enderlein. Não citar Enderlein quando se fala de Pleomorfismo, seria como não citar Einstein quando se fala da física da relatividade.
Bechamps é considerado o pai do Pleomorfismo. Este contemporâneo de Pasteur que exerceu forte crítica ao pensamento pasteuriano. Foi o primeiro cientista a admitir e descrever a Ciclogenia Bacteriana. Identificou minúsculos grânulos (granulationes moléculaires) que chamou de “microenzimas”, nas células vegetais e animais, que não desapareciam e se mantinham vivas mesmo após a morte da planta ou do animal. Dizia ele que esses grânulos eram a fonte da fermentação, e que os microrganismos poderiam se originar desses grânulos. No entanto, os achados de Bechamps foram ofuscados pelo o impacto das descobertas de Pasteur.
Na Alemanha Gunther Enderlein(1872-1968) retomou os trabalhos de Bechamps, e deu início à construção de uma obra monumental. Escreveu mais de 500 artigos científicos e tornou-se curador do Museu Zoológico de Berlin. O ponto alto de sua obra foi o livro “Ciclogenia Bacteriana”, com primeira edição em 1916. Neste ano, Enderlein estudando o tifo observou na microscopia de campo escuro minúsculos organismos móveis no sangue de pessoas acometidas por essa enfermidade. Esses minúsculos organismos copulavam e se fundiam com formas mais organizadas de bactérias, e o produto dessa copulação desaparecia instantaneamente. Enderlein suspeitou que estava observando um processo sexuado, em que formas inferiores (invisíveis à microscopia de campo claro), em termos de desenvolvimento embriológico, e não formas superiores tinham origem. Ele chamou essa pequena forma flagelar móvel assemelhada ao espermatozóide de spermit. Daí em diante, escolhe sua ferramenta principal – a microscopia de campo escuro.
Em seguida, Enderlein descobre simbiontes de origem vegetal no sangue dos mamíferos, que são responsáveis por várias funções vitais como a função plaquetária (produto dos simbiontes). Essas descobertas levaram Enderlein a propor as grandes teses do Pleomorfismo moderno, como veremos ao longo desse livro. Mas, apenas para podermos nos situar em relação ao campo do Pleomorfismo, e entender o impacto sobre as teorias médicas atuais, faço um breve resumo das teses de Enderlein:
O Pleomorfismo não aceita o conceito clássico de virulência do microrganismo do Monomorfismo. Para o primeiro, virulência está ligada ao estágio evolutivo (cicloestágio), chamado de estágio virulento, e o conceito de patogenicidade vai além da questão da virulência, como é o caso da sobrecarga Endobiôntica. A virulência pode ocorrer em qualquer fase do ciclo. Não é preciso que esteja na fase de culminância. A cura ou a remissão de um processo clinico, na maioria das vezes não se dão pelo desaparecimento do microrganismo, e sim pela dinâmica para uma fase evolutiva não patogênica. Essa questão foi exaustivamente demonstrada por Enderlein no estudo do bacilo diftérico.
Enfim, o Pleomorfismo vira de ponta cabeça as teses e teorias da medicina atual. Substitui o modelo mecanicocausal do monomorfismo pelo processo complexo da simbiose e a interação entre seres vivos, e desses com seus meios ambientes. Aqui, não cabe a intervenção de supressão ou a eliminação armada através das substâncias químicas. Fica a forte noção de que a medicina deve seguir os passos da biologia enquanto uma ciência dos processos vitais, que a tradição alemã tem chamado de medicina biológica. A superação do modelo terapêutico da medicina atual, que o brilhante médico alemão Hans Nieper rotulou de terapia toxicomolecular, passa obrigatoriamente pela superação do Monomorfismo. O prof Enderlein e o vasto campo da medicina biológica já nos mostraram o caminho: Pleomorfismo e as terapias biológicas.