Rumo ao ensino responsável – os aspectos didático e científico
1. Substituição do uso de animais vivos no ensino biomédico
É preciso usar animais no ensino biomédico? Para um número cada vez maior de professores e estudantes, a resposta é não. No mundo inteiro, faculdades de medicina, biologia, veterinária, farmacologia, psicologia, estão abandonando o uso de animais no ensino, e substituindo-o por métodos alternativos que proporcionam excelentes resultados, em termos de aprendizado.
A substituição de animais por métodos alternativos chega a 71% em instituições de ensino superior da Itália – abrangendo um total de 103 faculdades, de medicina, ciências naturais, farmacologia, medicina veterinária. No Brasil, cursos de biologia, veterinária, psicologia e outros também realizam mudanças similares.
2. Substituição do uso de animais vivos no ensino médico
A substituição também se verifica em 68% das escolas médicas norte-americanas, que cessaram o uso de animais em disciplinas de farmacologia, fisiologia ou cirurgia – incluindo instituições de renome como Harvard, Yale, Stanford e Mayo Medical School.
No Brasil, a faculdade de medicina da Fundação do ABC, em São Paulo, é a primeira a substituir por completo o uso de animais em suas aulas. Recentemente, a faculdade de medicina da UniFOA, no Rio de Janeiro, realizou mudança semelhante. Na faculdade de medicina da UFRGS, foi construído um moderno laboratório de técnica operatória, onde as aulas são ministradas com métodos alternativos. E em diversas outras instituições do país, o mesmo processo está acontecendo.
Estas instituições demonstram que a substituição é possível, usando em seu lugar métodos como vídeos interativos, bonecos sofisticados, observação e intervenção em pacientes humanos, entre diversos outros – todos capazes de proporcionar um aprendizado de ótima qualidade, sem o custo moral de usar, causar sofrimento e matar animais inocentes.
Mas o uso de animais, em medicina, é prejudicial por outros motivos.
3. O problema do “modelo animal” na educação médica
Usar ratos, coelhos ou cães, em disciplinas como Técnica Operatória e Cirurgia Experimental, é prejudicial ao aprendizado. Como afirma o biólogo Thalez Tréz, um dos especialistas em nosso país na questão do uso de animais em ciências biomédicas, as espécies animais “são entidades biomecânica e bioquimicamente diferentes. Cada espécie difere não somente dos humanos, mas também entre os indivíduos, anatomicamente, fisiologicamente, geneticamente e histologicamente. O cão é diferente do gato e o gato é diferente do rato. O rato também é diferente do camundongo. E todos são diferentes dos humanos”. Por exemplo, sabemos que cães têm uma disposição de órgãos diferente da verificada nos humanos, e a textura e elasticidade dos tecidos vivos são diferentes, bem como o coeficiente de vazão sanguínea. A dose de anestésico utilizada para manter os cães anestesiados também não é a mesma para se manter humanos na mesma condição. Ou seja, assim como ninguém tentaria conhecer o organismo de um animal pelo estudo do organismo do ser humano, também não faz sentido tentar conhecer o organismo do ser humano pelo estudo do organismo de um animal.
No aprendizado de cirurgia, esse fato já é notado desde o século XIX, conforme essas palavras do Dr. Lawson Tait, um dos mais importantes cirurgiões de sua época: “Tive que desaprender tudo que havia ‘aprendido’ em cães, e começar novamente pela anatomia humana. Atrasei meu progresso em cerca de 12 anos”. Nos Estados Unidos, a formação de cirurgiões passa longe do uso de animais, como explica o Dr. Jerry Vlasak, defensor da abordagem direta em pacientes humanos: “Temos um período de 5 a 7 anos de residência em cirurgia nos EUA. Começando no primeiro ano, os residentes são conduzidos através de operações simples, como reparos de hérnia e biópsias de mama, com um cirurgião mais experiente supervisionando atentamente. Desta forma se ensina as técnicas de tecido corretamente, e é combinado com o ensino didático da sala de operação e enfermarias. A medida em que o período de residência avança, o residente vai tendo contato com operações cada vez mais complexas, sempre sob supervisão de um cirurgião experiente”. O mesmo se verifica na Inglaterra, segundo as palavras do Prof. David B. Morton, do Head Centre for Biomedical Ethics, da University of Birmingham, que afirma: “Todos os cirurgiões britânicos aprendem cirurgia sem o uso de animais vivos”.
O uso de animais na educação médica, quando não é gravemente prejudicial, é totalmente irrelevante, pois tudo que se aprende com eles terá que ser reaprendido com base na observação do próprio ser humano.
4. Tecnologias alternativas – vantagens para o ensino, respeito para os animais
Métodos alternativos de ensino são aqueles que permitem substituir o uso de animais. Como enumerado no site da InterNICHE Brasil, as alternativas incluem realidade virtual, microcirurgia em placentas, cultivo de tecidos e órgãos humanos, técnicas de imageamento não-invasivas, simulações em computadores, modelos matemáticos, maquetes humanas, estudos em cadáveres, além do acompanhamento de pacientes e intervenções cirúrgicas sob supervisão de professores.
Muitas dessas tecnologias têm baixo custo, podendo ser até improvisadas de formas simples. Outras, embora tenham custo elevado, podem ser usadas durante longo tempo, o que compensa o gasto. É importante lembrar que a aquisição, a criação e a manutenção de animais, em boas condições de saúde, também implica um custo. Animais podem ser usados apenas uma vez – ao menos, é isso que se espera num curso que tenha um mínimo de cuidado.
As tecnologias alternativas oferecem diversas vantagens, do ponto de vista didático. “A adoção de métodos alternativos mantém a educação atualizada e sincronizada com o progresso tecnológico, com o desenvolvimento de métodos de ensino e contribuem para o pensamento ético. Mostram o respeito para com as considerações éticas dos professores e estudantes, e para com os animais. Com várias alternativas, os estudantes podem aprender em seu próprio ritmo. A qualidade da educação é acentuada, criando um ambiente saudável de aprendizagem com o mínimo de conflitos negativos, distração ou complicação. Muitos métodos humanitários de ensino são simples, previsíveis e repetíveis, de modo que princípios experimentais e objetivos posam ser aprendidos eficientemente.”
Enfim, o uso de métodos alternativos traduz uma concepção mais ampla do ensino, onde o respeito se torna um fator relevante em vários níveis. Esta postura não beneficia apenas os animais, mas também os alunos, o que é uma vantagem significativa do ponto de vista ético. Isto será visto no texto seguinte.
5. Substituição do uso de animais em faculdades de medicina no Brasil – depoimentos
Recentemente, a faculdade de medicina da USP, em São Paulo, inaugurou um centro de treinamento cirúrgico com tecnologia virtual. Presente ao evento, o governador José Serra afirmou: “Vai poder se treinar com muito mais efetividade, com muito mais garantia, os novos médicos, os residentes, os estudantes. Porque o centro é todo computadorizado e o estudante ou médico recém-formado faz uma cirurgia como se fosse verdadeira, embora seja virtual”.
Na faculdade de medicina da UFRGS, a construção de um novo laboratório de técnica cirúrgica, com base em tecnologias alternativas, permitiu resolver um antigo problema. “Queríamos acabar com um problema que sempre existiu nas faculdades de medicina. Algumas criam os animais para usá-los nas aulas, ainda vivos. Mas, e depois, o que se faz com eles? Uma eutanásia provocada?”, questiona o diretor, Dr. Mauro Czepienewski. Neste laboratório, os alunos utilizam braços e pedaços de pele falsos para praticar suturas e incisões, e também um torso, onde exercitam punções e colhem sangue artificial. Também são realizadas práticas mais complexas, como suturas dos intestinos grosso e delgado, em um material que simula os órgãos a ponto de a mucosa e a textura serem semelhantes às do corpo.
O Dr. Luiz Henrique Paschoal, diretor da faculdade de medicina do ABC, explica mudança realizada em sua instituição: “Existe movimento mundial para substituição do uso de animais na graduação por outros modelos. Atendemos solicitações de diversos docentes e alunos e resolvemos tentar, para posteriormente termos opinião definitiva”. Segundo a Dra. Nédia Maria Hallage, professora da FMABC, “Nossa missão é formar médicos humanos, mais envolvidos com o paciente e sensíveis à dor do próximo. Evitar que o aluno seja coadjuvante da morte ou do sofrimento de animais melhora o aprendizado, pois elimina o estresse do sentimento de culpa, além de incentivar a valorização e o respeito por toda forma de vida. Isso certamente será refletido na relação médico/paciente após a formação acadêmica”.
6. Conclusão
Como se vê, o argumento de que o uso de animais é indispensável para o ensino biomédico em geral, e médico em particular, não procede de forma alguma. Ao contrário, os fatos demonstram que é possível substituir esse uso, como está ocorrendo em centenas de faculdades ao redor do mundo, e em diversas outras no Brasil também.
No ensino médico, particularmente, o uso de animais como “modelo” em estudos cuja finalidade é o entendimento do ser humano constitui uma metodologia equivocada. Afinal, entre os animais e o ser humano, existem muitas diferenças, a ponto de qualquer semelhança entre seus organismos ser mais uma exceção do que uma regra. É somente pela abordagem do ser humano, ou fazendo uso de tecnologias que simulam o seu organismo, que se pode obter conhecimento capaz de proporcionar uma base segura para se lidar com a saúde humana.
Os chamados métodos alternativos substituem o uso de animais, apresentando diversas vantagens, do ponto de vista educacional e também ético. Nos vários cursos biomédicos, permitem evitar a repetição de experimentos que já se conhece, proporcionando aos alunos maior facilidade de manuseio, sem contar que são duráveis e econômicos. O estresse comum no uso de animais é evitado, com benefício para todos os envolvidos.
De modo que, independentemente do aspecto moral, pode-se questionar o uso de animais em bases exclusivamente científicas. O uso de animais nunca foi a melhor opção, sobretudo na medicina, posto que só faz adiar o que importa de fato: a abordagem do paciente humano.
Mas não se pode dissociar o problema científico do problema moral. Como evidenciam os depoimentos citados, a escolha por si só de usar métodos alternativos indica uma postura moral, que se refere à forma como se vê ciência, ensino e respeito aos animais. Aferrar-se ao uso de animais, ou optar por sua substituição, constituem escolhas com impacto imediato sobre o ensino e o bem-estar dos envolvidos.
A respeito da questão moral envolvida no uso de animais e sua substituição, falaremos na próxima mensagem.
Referência:
Artigos divulgados no site da Interniche, rede mundial de profissionais e estudantes de ciências biomédicas dedicados ao progresso no ensino. www.internichebrasil.org
Gratos pela atenção,
CPDA – Comitê para Pesquisa, Divulgação e Defesa dos Direitos Animais