É difícil para um senciente observar cavalos e muares velhos, anêmicos, mal ferrados, puxando uma carroça, muitas vezes com carga superior ao limite de suas forças, sob a escaldante temperatura do asfalto, em meio a um trânsito intenso das grandes cidades, conduzidos por irresponsáveis, insensíveis, imprudentes, impiedosos, cruéis, alguns bêbados e até drogados. E, ainda, saber que toda a dedicação, subserviência e resignação, não lhes garantem trégua, descanso justo, aposentadoria digna.
Atitudes animalescas me trazem sempre uma dose cavalar de tristeza, de repúdio, muita indignação, quando sinto que as chibatadas sobre o corpo extenuado, esquálido, de costelas salientes, quase perfurando o couro do tordilho ou do alazão, de visão comprometida pelos relhaços, não os livram dos matadouros.
De úteis a velhos, obsoletos, de bons préstimos, de fim funesto. Quando levados aos matadouros, privam-lhes de água, de comida por doze horas para o amaciamento da carne. Depois, conduzidos para o corredor da morte, tangidos, marretados, atordoados e inconscientes, têm as patas cortadas para jorrar todo o sangue, um procedimento exemplar para os que desejam o carimbo do SIF (Serviço de Inspeção Federal), já que em outros recantos, o abate é clandestino, até mesmo de animais recém-chegados da estropiada labuta.
É triste saber que o consumo da carne provida do sofrimento dos matungos vem crescendo no Brasil. Faz parte de cardápios de certos restaurantes e os adeptos da picanha, da alcatra, contrafilé e do filé mignon bovino, têm agora, um bife a cavalo de verdade, ou melhor, o de cavalo. Aquela carne malpassada, sangrando, tradicionalmente chamada de o “boi berrando”, será a de o “cavalo relinchando”. A carne rica em ferro, recomendada para os anêmicos, não se justifica, já que grande parte desses animais é anêmica, em razão dos maus tratos.
Sem problemas, pois tudo será resolvido com futura criação racional intensiva e extensiva de cavalos de corte, que abastecerá a Bélgica, Holanda, Itália, Japão, França, Austrália e Finlândia, os principais importadores da carne eqüina brasileira, restando parte do produto ao mercado interno muito aquecido pelas panelas, frigideiras e churrasqueiras. A carne é indigesta por razões sentimentais, afinal, o cavalo é animal extremamente inteligente, dócil, paciente, interativo em todas as funções, porque seus órgãos do sentido são aguçados, bastante refinados, de cheiro gostoso.
As prefeituras sempre recolhem os cavalos perdidos ou abandonados e os confinam em currais à espera dos donos. Os que não forem resgatados vão a leilão, mas, quase sempre são arrematados por uma única pessoa, que, certamente, não o faz por misericórdia, compaixão, por uma adoção sentimental: é a reciclagem dos lucros.
Enfim, não se admite que um animal de grandes préstimos, torturados pelo espancamento que lhe deixa marcas profundas, que chega a se curvar de dor, a tombar e até desmaiar, tamanha a exaustão, se acabem agonizando.
Se bem que, se no Nordeste estão enterrando jegues vivos, como obsoletos, pelo avanço das bicicletas e motos, não há muito que se esperar das bestas humanas.
Não podemos, jamais, nos esquecer daquela que abortou em pleno trânsito e teve que seguir na luta; do Trovão que depois de humilhado, não conseguiu se levantar. Mas, espera-se, que os negociantes de bom trote, de excelente galope, sempre encavalados na busca dos lucros, tenham o castigo justo, no cavalo-de-pau, e que os bons defensores tenham a verdadeira paz, que ela venha no dorso de um cavalo; que o símbolo da ferradura seja de muita sorte e prosperidade na luta.
Precisamos refletir sobre aquela frase de um presidente brasileiro: “Prefiro o cheiro de cavalo ao o de povo”.
João O. Salvador é biólogo
1 comment:
Muito tocante seu texto para quem ama os animais no geral e tem e conhece a benevolência dos cavalos…até quando veremos tal bestialidade nas ruas? Sem mais palavras, sua dor é minha dor…